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A adolescência da garota, o impacto da sociedade e a relação com a comida




Recentemente, passei a fazer parte de um grupo de estudos sobre transtornos alimentares na perspectiva da psicologia junguiana, conduzido pela psicóloga Vivian Bandeira - em que estamos lendo o livro Pais e filhas, Mães e filhos, de Verena Cast - e é interessante e intrigante como eu vejo a minha própria trajetória com transtornos alimentares descrita nos capítulos que lemos. Por exemplo, no nosso último encontro, lemos o capítulo “A adolescência da garota”, em que alguns trechos chegam a ser assustadores de tão assertivos.


Neste capítulo, a autora começa falando sobre o processo de formação de identidade da garota, já ressaltando o impacto da nossa sociedade sobre sua formação. A autora coloca:


“O problema para as mulheres consiste em não se exigir o desligamento do complexo paterno na sociedade tradicional. A mulher cumpre o papel social quando tem um namorado ou parceiro; (…) Isto significa exageradamente que, do ponto de vista da compreensão dos papéis, nossa sociedade dá a entender a uma adolescente que ela é “normal”, uma mulher correta - mesmo não tendo nenhuma identidade própria - quando, em última análise, depende de que um homem lhe prescreva uma identidade”.

Uou. Talvez seu primeiro pensamento ao ler isso seja: “nossa, que exagero”. Mas continuemos:


“Caso se pergunte às mulheres por sua existência de garota - que se manifestava por volta dos 10 anos - [vê-se] uma personalidade essencialmente mais independente, distinta, interessante. Com a adaptação [aos padrões esperados], a garota perde aspectos importantes de seu si-mesmo original. Isto mudaria se as garotas fossem elogiadas mais pela originalidade e menos pela adaptação, e se não considerassem as mulheres apenas em relação ao homem.”

Não sei vocês, mas em mim, essas palavras doeram na alma. Quando olho para trás, para aquela Nathália em seus 9, 10 anos, lembro de uma menina esperta, livre, criativa. Mas, pulando alguns anos, por volta dos 13, 14 anos, lembro de uma menina insegura, que não se achava bonita o suficiente, que não se achava boa o suficiente. E eu reflito: em que momento ela parou de gostar de si mesmo? Em que momento ela aprendeu que ser ela mesma não era ok, e que ela precisava se adaptar ao esperado pelo mundo?


“Ah, Nathália” - talvez você pense - “isso é a adolescência. Todos passam sobre isso”. Sim, é verdade. E a adolescência é, de fato, um momento de crise. Porém, isso não significa que deveria ser um abandono de si mesmo para buscar ser um outro alguém aceitável perante a sociedade, não é mesmo?


E aí me lembrei do que um outro autor, John Berger, diz: “Homens agem, mulheres aparecem”. Isto é, os homens são socializados para o agir, o fazer, o ser. As mulheres, porém, aprendem a “aparecer” - a sermos belas, magras, atraentes para termos um parceiro. Neste processo que a autora Verena Cast chama de adaptação, nós passamos a aprender a nos adaptar aos padrões esperados socialmente - padrões estes criados pelo olhar masculino. Essa é uma das razões pelas quais a adolescência é uma fase de risco para transtornos alimentares especialmente para meninas.


Porém, a autora chama a atenção para mais um ponto: a valorização do masculino. A autora coloca:


“O pai tornou-se modelo dos papeis, a mãe foi rejeitada. Também se rejeita o papel limitado das mulheres, pois elas (…) não podem aceitar a passividade e a insipidez de suas mães. (…) Elas tinham aprendido que por meio do trabalho compensam-se os problemas de identidade”

Que? Como assim, Nathália? Bom, as meninas, muitas vezes, passam a admirar os pais (e a desvalorizar as mães) e isso pode ocorrer pela valorização que ocorre do papel do pai: mais livre, mais poderoso. Quem nunca já desejou ter nascido homem? E nesse processo, muitas vezes, as jovens mulheres se dedicam insanamente ao trabalho como forma tanto de se aproximar do masculino e ser apreciada por suas capacidades, mas também para cobrir os vazios de sua própria falta de identidade. Inclusive, a obsessão por desempenho e perfeição é um traço comum em pacientes com anorexia nervosa.


E nossa! Eu vivi muito isso. Na adolescência, ao buscar me adaptar aos padrões esperados, vivi transtornos alimentares, e era obcecada com a perfeição. No meu processo de recuperação, fui fazendo as pazes com a comida, porém sem resolver meu conflito de identidade. Afinal, eu não sabia quem eu era. E nessa busca, minha compulsão se deslocou para outro ponto: o trabalho. Por uma década, trabalhei insanamente, buscando sempre conquistar mais (sem nunca sentir a plena satisfação), sempre fazer mais, sempre conseguir mais, e assim também tapar o buraco formado pelo “quem sou eu?”.


Além disso, a autora coloca:


“Mulheres que não desenvolveram nenhuma identidade original (…) reagem com depressão a separações. Em situações de separação, devemos nos reorganizar, partindo do si-mesmo das relações e voltando-se para o si mesmo original, o que, no entanto, só é possível se há um si-mesmo próprio”.

O que, novamente, conversa com a minha história. Os meus términos, separações e fins de ciclos sempre foram marcados pela depressão - afinal, não havia um mim-mesma para voltar. Usando a analogia da psicóloga Vivian, a cada um desses momentos, que exigiam que eu me reorganizasse, era como se tirassem todas as roupas do meu guarda roupa, mas eu não tivesse um norte meu para reorganizar aquela bagunça, e simplesmente entrasse em parafuso, precisando de um norte externo para me reorganizar (corpo perfeito, dieta, trabalho…). Isso vem explicando o meu diagnóstico de distimia e ansiedade (que, como conversamos no grupo de estudos, tem sido cada vez mais frequente também nos consultórios de psicologia).


Mas, Nathália, como deixar de se adaptar aos padrões e buscar ser quem se é? Ah, se houvesse resposta simples… Mas a autora diz:


“Emily Hancock descobriu, pesquisando mulheres autoconscientes de um modo acima da média, que elas reencontraram um acesso à sua “garota interior” e com isso liberaram seu eu verdadeiro, frequentemente depois de longos anos de determinação externa”.

É nesse processo que estou hoje: reencontrando à minha garota interior - numa busca longa, de muitos anos, muito dolorosa, mas que tem sido muito recompensadora.


É fácil tudo isso? Não.

E o que tem a ver com a relação com a comida? Tudo.


Por baixo da nossa relação com a comida, e com o corpo, existem estes complexos não tratados, existem expectativas sociais inconscientes. Os próprios transtornos alimentares, apesar de serem doenças, são sintomas que têm função na sua vida. A compulsão alimentar como forma de preencher o vazio da falta de identidade; uma anorexia nervosa como forma de se distanciar do feminino; o engordar como forma de impor respeito num ambiente masculinizado que sexualiza o corpo feminino… falo aqui de exemplos muito genéricos, mas só para ilustrar.


E a autora finaliza o capítulo dizendo:


“Seria fundamentalmente importante para todas as mulheres (…) que elas sempre lidassem com sua identidade experienciada e com as rupturas de identidade e não se curvassem diante de teorias que pregam como deve ser a identidade feminina. (…) deveríamos falar sobre isso em grupos de mulheres. (…) As mulheres não podem permitir que outras mulheres e muito menos outros homens lhe atribuam este lugar; devem, sim, identificar e ocupar este lugar que lhes é apropriado.”

Verena Cast me descreveu nesse capítulo, e foram décadas para conseguir ver tudo isso na minha vivência. Ser mulher nessa sociedade é lutar diariamente por espaço, inclusive pelo espaço de ser si mesma. Que possamos nos unir e tornar tudo isso mais fácil para as meninas que vierem nas gerações seguintes.


Esse capítulo da Verena Cast colocou em palavras o que vim vivendo, o que venho estudando e o que vi muitas vezes nos meus anos de consultório: o buraco é mais em baixo. Não é simplesmente sobre o que comer, sobre qual dieta seguir, sobre qual peso ver na balança: é sobre quem você é, e o que não deixaram você ser.


Sabe aquela frase comum (e errônea) "você é o que você come?" Na verdade, muitíssimas vezes, você come (a forma como você come) o que você é - ou melhor, o que não te deixam ser, o que te moldaram a ser.



Por Nathália Petry, escritora, formada em Nutrição, especialista em transtornos alimentares.

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